Sunday, October 21, 2007

Yolanda


A pitonisa está deitada sobre Yolanda. Pasta nas traduções. Abotina-se. Segreda-se. «Sou devorada pelos precepícios de uma história que está sempre a precepitar-se para coisas infâmes. Falta-me aquela dureza dos clérigos quando esgrimem o ad secula seculoram. As coisas sacodem-se de mim, ou em mim. Os destinos alheios parecem primordais porque vêm da terra, com máscaras argilosas. Andam à procura de quem lhes dê alma, ou os faça solitáriamente pastáveis.»


Yolanda recebe o corpo da pitonisa que tem aquele calor frio de serpente. É uma carne com temperatura de climas mais a norte, mas é esguia e envolvente.


Yolanda cresceu em falanstérios. Foi educada na ansia revolucionária. Desconfiou sempre dos que se fazem passar por inocentes. Sabe que amar é ser vulnerável a coisas cornudas. Amou uma líder de um kibutz trinta anos mais velha do que ela e que a trocou por uma rapariga dez anos mais nova. Mas Yolanda gostou dos ventos palestinos, das laranjas espremidas, das noites nas praias comendo gelados de corantes e ouvindo canções da moda. Trabalhou numa tabacaria num centro comercial e viu pessoas agitadas com coisas santas e cheias de vontade explodir.


Yolanda fez-se artista porque tinha vontade. Umas pessoas dizem que é preciso vocação. O que é a vocação? Habilidade? Impaciência? Um bichinho? Uma gravidez poética? No seu caso tinha sido inquietação e percebera que não era difícil dar o tal passo em frente. As cidades convidam a esse papel furioso e supostamente nobre, e o salto é pequeno. É certo que há, para já, imensas tradições que piscam os olhos e querem arrastar-nos para as redes obscuras do passado. Mas Yolanda percebeu que devia começar por ser unilateralmente moderna. Ela via-se como uma «pastora da actualidade», porque o passado é uma coisa que demora o resto da vida a encontrar os fios que já estão estampados nas supostas incongruências do presente.


Uma artista deve ser multipla, disseminada, infernal, corporal, se calhar feminista. Ela tinha estado em Israel, na Palestina, no Egipto. Boiara no mar morto. Subira ao monte Sinai. Banhara-se no rio Jordão. Sentira o odor a eternidade degradada nos bicos pouco bicudos ao perto das pirâmides. Sentara-se em sítios onde o sol é forte e a sombra é nítida. Percebera o papel murmurante das sombras e dos duplos, e das instancias demoniacas das imagens pintadas. E de como tudo isso se combinava com uma guerra onde o mundo teimava em desabroxar com muitos pretextos politicos a passar por religiosos.


Yolanda era a negatividade da negatividade. Uma sombra a projectar-se para pessoa. Revia-se em deuses e deusas com cornos. Como artista sabia que tudo neste mundo é material e mediático, mesmo a mais desgastada solidão. Mas também sabia que a piedade é irmã da orgia, e que é pouca a diferença entre a monja e a ménade. Ela começou por fazer instalações no deserto, com urzes, a ver se estas registavam algum indicio falante de YHVH. Não se percebeu se registavam, ou se as urzes já eram a voz de YHVH sempre que o vento por elas passava, tagarelando num dialecto demasiado divino para ser traduzido. YHVH diz que é mulher, e que a divertem as lutas inuteis dos homens.


Yolanda passeou-se pela europa e deitou-se com muita gente. As pessoas com quem se deitava na europa eram complicadas e estavam mais atentas a uma tensão orbitante do que aos corpos. Sobre os europeus pesa a culpa perpétua de já não poderem ser ferozes, expansionistas, audazes, dominadores, cruéis. Na sua posição de deitada apercebeu-se que a vocação da arte nascia (òbviamente!) nas correntes passionais, e que essa constatação era mais um clichê a que não se podia escapar.


As tradições vão-nos desgastando e corrompendo até entrarmos nelas. A certa altura temos orgulho em fazer parte de mais um cavernoso passado e lavamos os dentes até estes reluzirem num cantinho se possível bem iluminado da história. Esquecemos que um hálito corrupto atravessa as obras e que a museologia e outros afãs legitimadores são exímios em dissimulá-lo.


Yolanda encontrava-se nesse estado horizontal. A pitonisa via-lhe o amor a querer abocanhar as coisas como um bicho apocaliptico com olhos espalhados pelo corpo. Então beijava-lhe a fertilidade vindora e massajava-lhe a lucidez e punha-lhe os dedos nos pontos onde a loucura irradiava um pouco. «Nada nos devora tanto como nós próprios. Há uma beleza cumplice da intiligência e uma outra beleza que conspira assassinamente contra esta». Yolanda acolhia essa guerra bicéfala e não se deixava dilacerar. Ela olhava os pés da pitonia com sofreguidão. Pés negros num corpo leitoso. Pés de fauna abeirando-se de um bosque.


E havia essas pinturas do Vermeer onde a cor é densa e subtil e onde as mulheres parecem levitar sem oráculos. A pitonisa perferia Rubens, o das carnes, da abundância, de onde os impetos do barroco partem para todas as caças.


Foi então a pitonisa acometida de estremecimentos. Yolanda estava quieta. A pitonisa começou a estrabuchar de embriagada, a soltar frases, a rimar destinos, a sentir por dentro do seu corpo as cordas muito esticadas do deus da lira. A pitonisa caíu ainda mais branca, mais fria e ficou-se pelo chão tão impávida. Morta. Uma amiga judia, brasileira, versada em Orixás avisara-a à muito tempo de que o sabor do seu corpo podia ser mortal. Yolanda não se precavera porque desconfiava das chantagens desse tipo de gente.


A inocencia que tanto desprezara tinha-lhe aterrado nesta cena.


Yolanda continuou quieta e imensamente deitada.

No comments: