É a nossa primeira crítica — saíu-nos mal, mas é melhor que nada. A foto em cima é da Susanne Themlitz (muito obrigado Susanne), que poderia dizer muito mais e bem melhor que nós — queremos dizer que preferiríamos uma abordagem mais assim, vista de baixo, rente ao chão, mais de artista e com mais atenção, mas dormimos mal, acordamos abstractas. E aqui vai ela
Já
não há origens. Nenhumas. Nem
se pode saber se.
Se
foram as origens quaisqueres
que sejam.
E
não há nenhuma razão para que nasçam
as
origens Nenhuma
fé
sequer
ídolo
de Amorgos!
Parece
esquisito começar a abordar a
exposição da senhora Trockel citando um poeta italiano, homem, que se chama
Emilio Villa e que põe o ponto nos is da questão das origens — já lá vai muito
tempo — mas andávamos à procura de um outro poema dele sobre aranhas, ou
coisas aracnídeas, porque Trockel habituou-nos a coisas filandeiras (ai Velásquez!) , e lá
buscamos e encontrámos esta tradução nossa (feita a partir de um pseudo-latim? ou foi outra lingua? já não nos lembramos — )
a
gélida passagem
dos
Fundamentos das Coisas, alcançada
a
divina simulação, ventosa
e
a Teia dos sussurrantes
milénios,
indefenida se estende
elipse
da aranha que joga
e
nesse momento o infinito
Perimetro,
o grande Desdobramento
da
Porcaria, jaula das Mutações,
começa
a elevar-se
Villa
foi um poeta radical e grande divulgador das então vanguardas italianas,
sobretudo Burri e Fontana, artistas que de algum modo ecoam, quer se queira
quer não ao longo deste corropio de coisas fiadas, desconfiadas e imediatamente
sexualizadas, do encarar o suporte tradicional da pintura, a tela,
essencialmente como tecido, a fender, a exibir o reverso, a mostrá-lo como saco
ou colagem.
Os
antigos tinham, assim que nos lembremos, alguns mitos sobre os fios: o das
Parcas, o de
Aracné e o de Penélope. As Parcas destribuem os destinos, fiam-nos. Aracné, uma
adolescente bordadeira, entrou em competição com Atena, e acabou por se
enforcar; Penélope é a hábil senhora da sua obra, uma especialista em
adiamentos e esperas, os aspectos complementares do tempo narrativo. O escritor catalãoVilla
Matas recentemente escreveu uma teoria da narrativa considerando a espera o
assunto principal da arte romanesca. Porém o adiamento, ou o inadiável que é a
morte, é algo que se produz simultaneamente — a narradora das mil e uma noites
— e não é por acaso que também é uma mulher.
Nesta exposição de Trockel parecemos
passar do trauma post-menopausa, que lhe foi duro assunto, para os desafios do
inadiável (e a hipotética evasão do inadiável pela arte), entre a vontade de exibir uma obra forte e a re-encenação dos seus
fantasmas, das influências, admirações. Inconformismo, serenidade, ângustia,
escárnio? Trokel faz parte da corrente menipeica, a que não é estranha a sua
inserção na carnavalesca Colónia, e a filiação nessa suposta tradição
anti-artistica que foi o Dadaísmo — ainda que no seu caso pensemos em
Schwitterz, Hanna Hoch e toda a temática libinal de Duchamp, desde a noiva à
sua última obra. O que supõe um
discurso desconversante, assuntos marotos, uma vontade prazenteira de
contradizer clichés e desfrutar a vida de corpo inteiro até ao fim. E depois
teve, como quase todos os artistas alemães, o peso politizador do chamã fake que foi Beuys, incontornável com o seu
chapéu suádo, e claro está Richter e Polke que marcaram, quer se queira quer
não os artistas mais irreverentes da geração de Trokel: Walter Dahn, Dokoupil,
Oehlen e Kippenberg.
Trokel
ficou sobretudo conhecida como "a" artista feminista europeia dos
anos 80 por causa dos seus tricots, que parodiavam a cultura das revistas femeninas de tricot, corte e costura,
através de uma pseudo-politização. Conseguiu assim tornar-se uma artista
icónica, e floresceram, pouco depois, aos montes, as artistas que se afirmavam como feministas
por causa de alguma particularidade da cultura de lazer femenino, mais bordado
menos bordado.
A
exposição é constituída, salvo pequeníssimas excepções, por obras recentes —
duas salas focadas em obras diversas, subretudo tridimensionais; um corredor
com a maioria das colagens e duas salas finais com obras mais
"pictóricas" ou de grande escala. É claro que podiamos falar
demoradamente sobre peças específicas — porque elas o pedem. Como sempre. Também
sabemos que a sua obra é ("apenas"?) mais uma das tais que andam a
contestar os limites canónicos da arte... a prática oficial da arte parte desse
pressuposto. É isso que o ensinam as escolas de arte, os museus, as revistas,
que o proclamam os críticos e que mais agrada aos grandes coleccionadores. A
juvenilização da cultura e a mercantilização da imaturidade (ó Gombrowicsz!), é
o apanágio da nossa época, e a imagem que Trokel e os seus legitimadores querem
deixar de si é a da rejeição do "estilo tardio" — pelo menos é o que
vem elaboradamente reclamado num dos textos que acompanha a exposição. Forever
Young? Desconfio desta polémica, e não conseguimos deixar de sentir nesta
exposição as caracteristas dos estilos tardios, que são normalmente
"i-moralistas", com maestria, e caracterizados por maior liberdade e
desleixe. Estamos a pensar em casos como Ticiano, Rembrandt, Goya, Picasso,
etc. É um estilo que mistura o "já me estou nas tintas" com a
inevitável revisitação e re-montagem de temas antigos, assim como um aprofundamento
das "cenas primitivas" e da auto-auto-retratação.
Por
exemplo: as colagens mostram diálogos com a história de arte, sobretudo do
século XX: Rainer, Bacon, Gilbet & George, Polke, Fontana, etc. Os
organizadores da exposição, não sei se com a cumplicidade de Trockel (acho que
ela não se preocupou muito com esta "passagem" pela falida Lisboa,
tal como, a contar pelas pessoas que estavam na inauguração, o art world
português não se parece interessar muito por esta artista) insistiram sobre a citação/apropriação
da pintura de Courbet, a Origem do Mundo, um dos statements mais fortes da
arte, pela combinação de duas ideias, a de cosmogonia com a porneia, neste caso
o sexo femenino em quase close-up. A associação deste corpo ao artista Raymond
Petitbon não nos suscitaria reflexões por aí além, como vem num dos textos,
porque nos parece apenas uma piada divertida (e porque não) — já a da aranha (é
de Trockel a imagem, ou é uma fotomontagem de outro?) com o fundo manchado (re-des-mentruado?)
parece pedir uma reflexão que corrija as reflexões de Brigid Doherty que
projecta as suas fantasias sexuais parideiras ou masturbatórias, em vez de
olhar para a obra de R.T. , que tantas vezes usou aranhas, incluindo o famoso
caso do efeito do uso de diferentes drogas nas aranhas, produzindo padrões bem
distintos. É certo que o caracter repelente da aranha aqui associado à
sexualidade femenina é um dado adquirido pela cultura popular — trata-se de enunciar uma relação forte
entre o nascimento, a morte, a sexualidade, a criação de teias, padrões, fios
que são ao mesmo tempo armadilhas, vestes, filiações, etc. No fundo cada génese
implica um luto, e o luto é antecipada consciência de um futuro
desaparecimento. Mas será? As colagens sobre a morte da mãe e os seus vestígios
de roupa, como se uma memória e energia ainda as habitasse parecem prolongar essa
cosmogonia-tanatologia. Mas devemos desconfiar de ideias tão simples. Os idolos
cicládicos como o de Amorgos, de que Villa fala a propósito das (não)origens,
são a representação neolitica, esquemática e obcessiva, da mulher.
Não
sabemos muito bem o que Rosemarie quiz dizer, questionar, ironizar ou qualquer
coisa parecida com a maioria dos seus trabalhos. Os artistas estão a maioria
das vezes mais preocupados com o fabrico, as ramificações, o natural jogo entre
o que os obceca e o que daí pode saír, do que em impôr um sentido. A
ambiguidade e a indeterminação existe misturada com "alguma" intencionalidade,
mas são os efeitos
Porém
saímos da exposição muito meditativas, mais atentas, mais interessadas nos
materiais que nos rodeiam, e a pedir também que Trockel se livre dos acrílicos
que edstão aparafusados às caixas das colagens, porque as coisas pedem um olhar
mais vivo, sem patines. No grande
Desdobramento da Porcaria a jaula das Mutações começa a elevar-se.
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