para a Ana Vidigal, com admiração
Confessamos que não sabemos onde começar, mas ontem à noite deitámo-nos com vontade de fazer da nossa vida epistolar amorosa uma espécie de crítica de
arte, vade retro, cruzes canhoto — ou pelo menos algo parecido com crítica de
arte, porque queremos tagarelar sobre as coisas, sobretudo das artistas, que aí
andam, à espera que alguém diga pelo menos o mínimo sobre elas, porque
tagarelar sobre arte pode ser algo apaixonante, emotivo, e que dê mesmo para
desatar a rir de euforia ou chorar de uma comoção estupida que se fez ao piso,
que nos caíu em cima como uma bebedeira. Escrever sobre arte é para nós uma
tarefa artística, não nos vamos armar em inocentes — a ideia é oportunista,
torna-nos mais importantes e mais completas e mais necessárias e mais giras aos
olhos das outras. Quem é que não o quer? Mas dá trabalho! Normalmente ficamos
aborrecidíssimas quando lemos sobre arte, mesmo sendo o caso de mulheres que
temos por dignas e enxutas e super interessantes. Eu sei que o nosso discurso,
que é essencialmente amoroso, como o do Barthes (lembram-se?), vos vai parecer
ridículo, porque já dizia o Campos, a desculpar-se, que as cartas de amor são
ridículas, mas mais ridícula é a escrita sobre o que vai em arte que teme
exibir precisamente o que a arte pede: aproximação, paixão, vontade vulcanica
de entender, e outras coisas do género.
A história mais antiga da crítica regista os casos
exemplares de Diderot, Baudelaire e Wilde, que eram todos apaixonados e
sulfúricos, como exemplos onde a escrita sobre arte corresponde a uma pulsão ou
a uma necessidade erótica. É o que garante a intensidade. Se quiserem
chamem-lhe subjectividade. É uma excitação que não te larga a cabeça enquanto
não escarrapachas o que sentiste sobre determinadas obras de arte no papel.
Também há a os inconvenientes da incompreensão. Não conhecemos nenhum artista que
não vista a camisola da incompreensão, mesmo os mais apaparicados e celebrados
e galardoados. Escava-se um bocadinho nas conversas e lá vem a incompreensão
toda aperaltada com meia dúzia de rancores a compor o ramalhete.
Estimamos que as ideias que nos surgem a propósito das
obras de arte não nos chegam pré-fabricadas do alto do infinito - são compostas
aos poucos, através de hesitações, enervamentos, momentos daqueles em que
parece que um vazio se instala quando puxamos pela cabeça. E depois o estilo
também forma as opiniões e as ideias. Outras vezes, a meio da escrita, passamos
a ver a coisa de outra maneira — se calhar mais interessante, se calhar mais
pedante e equívoca. Achamos importante registar os estados vagos, indecisos e
decisórios das nossas reflexões, assim como as convulsões que no corpo
acompanham esses estados. É tudo muito aproximativo, como um engate. È claro
que há dias em que emburrecemos, e que só nos saiem coisas parvas, e que as
nossas boas intenções ficaram no bidé.
Há muitas desconfianças sobre a maneira como se vê a arte.
A arte no atelier não é a mesma coisa que a arte na galeria, que a arte na
feira, que a arte no museu ou que a arte no livro, ou na revista, com
acompanhamento de textos laudatórios ou críticas malévolas de arranhar de
rancor a mesa. Há muitas obras de arte que são feitas para belos sítios solenes
- ou são feitas mesmo nesses sítios. Mas o que nós gostamos é da arte onde ela
parece menos eficaz, mais coitadinha, com menos espaço para respirar, que é no
momento em que está a ser feita, no chão, de cócoras, em cima da mesa, na
fábrica. É a intímidade, o buzílis, seja delicado ou javardo. A arte nas
exposições ou nos museus, assim a seco, parece-nos mais fria, mais puta, mais
apta a ser vendida ou subir nas cotações, legitimada não se sabe muito bem para
quê, e por aí adiante. É claro que muitas exposições são como livros, compostas
para ser lidas e vistas assim. A retórica do expôr faz parte da raison d'être,
não acham? A montagem é cada vez mais a prova de uma sensibilidade, mas também
de uma des-intimidade e dissimulação. Acho que devemos falar sobre isso e
perguntar, com toda a candura de uma curiosidade infantil: "ò menina,
porque é que montaste a exposição assim"?
Quando vamos as exposições quantas vezes não caímos numa preplexidade súbita, num baralhamento, a não perceber patavina... E depois perguntamos,
explica-me lá um bocadinho a ver se a gente entende alguma coisa — e ficamos
maravilhadas, a "adorar", como dizem as adolescentes e as tias, a perceber a
força oculta, a pequena história, a confissão brejeira, a divertida e pomposa
teoria, e outras coisas parecidas. Se calhar as outras pessoas também o deviam
saber para não continuarem na indiferença ou andarem a dizer coisas despropositadas.
Dá-nos uma especial satisfação dar conta destas clandestinidades, das
trabalheiras, dos modos de confecionar as obras, dos fait-divers
autobiográficos, porque isto, aquilo e aqueloutro, não acham?
Prometo que a nossa aproximação vai tentar ser assim, mais
natural, mais sensível, sem descurar ideias género "profundas" ou
incorrer em embasbacadas tentativas de poetisar... qual é o mal?
Recapitulemos então porque é que queremos ser
criticas-artistas-escritoras
a) porque há um vazio imenso, olá se há, sobre a arte que
se faz por cá, aqui, ainda por cima com esta crise merdosa em cima, tipo núvem escura cada vez mais densa — e desse vazio nasce um terrível silêncio que
é a pior das censuras, o mais candido fascismo bem portuguesinho. E já que estamos numa de chamar
as coisas pelos nomes, achamos que pactuar com esse silêncio, ficar caladinhas,
é legitimar o estado das coisas. Uma passividade patética, uma panhonhisse que
não interessa ao menino Jesus. Esse silêncio é essencialmente afectivo e tem um
efeito de degradação do entusiasmo dos artistas. Eles (isto é, nós) precisam
que se diga mesmo qualquer coisinha, mesmo que seja uma frase querida, uma ou
duas linhas com ar enigmático. Os artistas precisam de uma comoção sentida, de
admiração — é quase tão importante como comer.
b) porque escrever sobre o que vai aí, no mundo arte, para
além das tricas, que também têm às vezes (mas nem sempre!) o seu interesse,
deveria ser um acto essêncialmente prazenteiro, divertido, um exercício de
intiligência ao qual não falte sensibilidade — podemos parecer líricas e
ingénuas ao dizer isto, mas garanto-vos que é o que vamos fazer, e que não nos vão
faltar manhas para levar a bom porto este urgentíssimo projecto.
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