Friday, October 12, 2012

ARREBATADORAMENTE CRÍTICAS






para a Ana Vidigal, com admiração

Confessamos que não sabemos onde começar, mas ontem à noite deitámo-nos com vontade de fazer da nossa vida epistolar amorosa uma espécie de crítica de arte, vade retro, cruzes canhoto — ou pelo menos algo parecido com crítica de arte, porque queremos tagarelar sobre as coisas, sobretudo das artistas, que aí andam, à espera que alguém diga pelo menos o mínimo sobre elas, porque tagarelar sobre arte pode ser algo apaixonante, emotivo, e que dê mesmo para desatar a rir de euforia ou chorar de uma comoção estupida que se fez ao piso, que nos caíu em cima como uma bebedeira. Escrever sobre arte é para nós uma tarefa artística, não nos vamos armar em inocentes — a ideia é oportunista, torna-nos mais importantes e mais completas e mais necessárias e mais giras aos olhos das outras. Quem é que não o quer? Mas dá trabalho! Normalmente ficamos aborrecidíssimas quando lemos sobre arte, mesmo sendo o caso de mulheres que temos por dignas e enxutas e super interessantes. Eu sei que o nosso discurso, que é essencialmente amoroso, como o do Barthes (lembram-se?), vos vai parecer ridículo, porque já dizia o Campos, a desculpar-se, que as cartas de amor são ridículas, mas mais ridícula é a escrita sobre o que vai em arte que teme exibir precisamente o que a arte pede: aproximação, paixão, vontade vulcanica de entender, e outras coisas do género.

A história mais antiga da crítica regista os casos exemplares de Diderot, Baudelaire e Wilde, que eram todos apaixonados e sulfúricos, como exemplos onde a escrita sobre arte corresponde a uma pulsão ou a uma necessidade erótica. É o que garante a intensidade. Se quiserem chamem-lhe subjectividade. É uma excitação que não te larga a cabeça enquanto não escarrapachas o que sentiste sobre determinadas obras de arte no papel. Também há a os inconvenientes da incompreensão. Não conhecemos nenhum artista que não vista a camisola da incompreensão, mesmo os mais apaparicados e celebrados e galardoados. Escava-se um bocadinho nas conversas e lá vem a incompreensão toda aperaltada com meia dúzia de rancores a compor o ramalhete.

Estimamos que as ideias que nos surgem a propósito das obras de arte não nos chegam pré-fabricadas do alto do infinito - são compostas aos poucos, através de hesitações, enervamentos, momentos daqueles em que parece que um vazio se instala quando puxamos pela cabeça. E depois o estilo também forma as opiniões e as ideias. Outras vezes, a meio da escrita, passamos a ver a coisa de outra maneira — se calhar mais interessante, se calhar mais pedante e equívoca. Achamos importante registar os estados vagos, indecisos e decisórios das nossas reflexões, assim como as convulsões que no corpo acompanham esses estados. É tudo muito aproximativo, como um engate. È claro que há dias em que emburrecemos, e que só nos saiem coisas parvas, e que as nossas boas intenções ficaram no bidé.

Há muitas desconfianças sobre a maneira como se vê a arte. A arte no atelier não é a mesma coisa que a arte na galeria, que a arte na feira, que a arte no museu ou que a arte no livro, ou na revista, com acompanhamento de textos laudatórios ou críticas malévolas de arranhar de rancor a mesa. Há muitas obras de arte que são feitas para belos sítios solenes - ou são feitas mesmo nesses sítios. Mas o que nós gostamos é da arte onde ela parece menos eficaz, mais coitadinha, com menos espaço para respirar, que é no momento em que está a ser feita, no chão, de cócoras, em cima da mesa, na fábrica. É a intímidade, o buzílis, seja delicado ou javardo. A arte nas exposições ou nos museus, assim a seco, parece-nos mais fria, mais puta, mais apta a ser vendida ou subir nas cotações, legitimada não se sabe muito bem para quê, e por aí adiante. É claro que muitas exposições são como livros, compostas para ser lidas e vistas assim. A retórica do expôr faz parte da raison d'être, não acham? A montagem é cada vez mais a prova de uma sensibilidade, mas também de uma des-intimidade e dissimulação. Acho que devemos falar sobre isso e perguntar, com toda a candura de uma curiosidade infantil: "ò menina, porque é que montaste a exposição assim"?

Quando vamos as exposições quantas vezes não caímos numa preplexidade súbita, num baralhamento, a não perceber patavina... E depois perguntamos, explica-me lá um bocadinho a ver se a gente entende alguma coisa — e ficamos maravilhadas, a "adorar", como dizem as adolescentes e as tias, a perceber a força oculta, a pequena história, a confissão brejeira, a divertida e pomposa teoria, e outras coisas parecidas. Se calhar as outras pessoas também o deviam saber para não continuarem na indiferença ou andarem a dizer coisas despropositadas. Dá-nos uma especial satisfação dar conta destas clandestinidades, das trabalheiras, dos modos de confecionar as obras, dos fait-divers autobiográficos, porque isto, aquilo e aqueloutro, não acham?

Prometo que a nossa aproximação vai tentar ser assim, mais natural, mais sensível, sem descurar ideias género "profundas" ou incorrer em embasbacadas tentativas de poetisar... qual é o mal?

Recapitulemos então porque é que queremos ser criticas-artistas-escritoras

a) porque há um vazio imenso, olá se há, sobre a arte que se faz por cá, aqui, ainda por cima com esta crise merdosa em cima, tipo núvem escura cada vez mais densa — e desse vazio nasce um terrível silêncio que é a pior das censuras, o mais candido fascismo bem portuguesinho. E já que estamos numa de chamar as coisas pelos nomes, achamos que pactuar com esse silêncio, ficar caladinhas, é legitimar o estado das coisas. Uma passividade patética, uma panhonhisse que não interessa ao menino Jesus. Esse silêncio é essencialmente afectivo e tem um efeito de degradação do entusiasmo dos artistas. Eles (isto é, nós) precisam que se diga mesmo qualquer coisinha, mesmo que seja uma frase querida, uma ou duas linhas com ar enigmático. Os artistas precisam de uma comoção sentida, de admiração — é quase tão importante como comer.

b) porque escrever sobre o que vai aí, no mundo arte, para além das tricas, que também têm às vezes (mas nem sempre!) o seu interesse, deveria ser um acto essêncialmente prazenteiro, divertido, um exercício de intiligência ao qual não falte sensibilidade — podemos parecer líricas e ingénuas ao dizer isto, mas garanto-vos que é o que vamos fazer, e que não nos vão faltar manhas para levar a bom porto este urgentíssimo projecto.

Sóniantónia e Sandralexandra

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