Sunday, October 14, 2012

FLAGRANTE DELEITE ROSEMARIE TROCKEL


É a nossa primeira crítica — saíu-nos mal, mas é melhor que nada. A foto em cima é da Susanne Themlitz (muito obrigado Susanne),  que poderia dizer muito mais e bem melhor que nós — queremos dizer que preferiríamos uma abordagem mais assim, vista de baixo,  rente ao chão, mais de artista e com mais atenção, mas dormimos mal, acordamos abstractas. E aqui vai ela


Já não há origens. Nenhumas.             Nem se pode saber se.
Se foram as origens                         quaisqueres que sejam.

E não há nenhuma razão para que nasçam
            as origens                        Nenhuma fé
            sequer

ídolo de Amorgos!

Parece esquisito  começar a abordar a exposição da senhora Trockel citando um poeta italiano, homem, que se chama Emilio Villa e que põe o ponto nos is da questão das origens — já lá vai muito tempo — mas andávamos à procura de um outro poema dele sobre aranhas, ou coisas aracnídeas, porque Trockel habituou-nos a coisas filandeiras (ai Velásquez!) , e lá buscamos e encontrámos esta tradução nossa (feita a partir de um pseudo-latim? ou foi outra lingua? já não nos lembramos — )

a gélida passagem
dos Fundamentos das Coisas, alcançada
a divina simulação, ventosa
e a Teia dos sussurrantes
milénios, indefenida se estende
elipse da aranha que joga
e nesse momento o infinito
Perimetro, o grande Desdobramento
da Porcaria, jaula das Mutações,
começa a elevar-se

Villa foi um poeta radical e grande divulgador das então vanguardas italianas, sobretudo Burri e Fontana, artistas que de algum modo ecoam, quer se queira quer não ao longo deste corropio de coisas fiadas, desconfiadas e imediatamente sexualizadas, do encarar o suporte tradicional da pintura, a tela, essencialmente como tecido, a fender, a exibir o reverso, a mostrá-lo como saco ou colagem.

Os antigos tinham, assim que nos lembremos, alguns mitos sobre os fios: o das Parcas,  o de Aracné e o de Penélope. As Parcas destribuem os destinos, fiam-nos. Aracné, uma adolescente bordadeira, entrou em competição com Atena, e acabou por se enforcar; Penélope é a hábil senhora da sua obra, uma especialista em adiamentos e esperas, os aspectos complementares do tempo narrativo. O escritor catalãoVilla Matas recentemente escreveu uma teoria da narrativa considerando a espera o assunto principal da arte romanesca. Porém o adiamento, ou o inadiável que é a morte, é algo que se produz simultaneamente — a narradora das mil e uma noites — e não é por acaso que também é uma mulher. 

Nesta exposição de Trockel parecemos passar do trauma post-menopausa, que lhe foi duro assunto, para os desafios do inadiável (e a hipotética evasão do inadiável pela arte), entre a vontade de exibir uma obra forte e a re-encenação dos seus fantasmas, das influências, admirações. Inconformismo, serenidade, ângustia, escárnio? Trokel faz parte da corrente menipeica, a que não é estranha a sua inserção na carnavalesca Colónia, e a filiação nessa suposta tradição anti-artistica que foi o Dadaísmo — ainda que no seu caso pensemos em Schwitterz, Hanna Hoch e toda a temática libinal de Duchamp, desde a noiva à sua última obra.  O que supõe um discurso desconversante, assuntos marotos, uma vontade prazenteira de contradizer clichés e desfrutar a vida de corpo inteiro até ao fim. E depois teve, como quase todos os artistas alemães, o peso politizador do chamã fake que foi Beuys, incontornável com o seu chapéu suádo, e claro está Richter e Polke que marcaram, quer se queira quer não os artistas mais irreverentes da geração de Trokel: Walter Dahn, Dokoupil, Oehlen e Kippenberg.

Trokel ficou sobretudo conhecida como "a" artista feminista europeia dos anos 80 por causa dos seus tricots, que parodiavam  a cultura das revistas femeninas de tricot, corte e costura, através de uma pseudo-politização. Conseguiu assim tornar-se uma artista icónica, e floresceram, pouco depois, aos montes, as artistas que se afirmavam como feministas por causa de alguma particularidade da cultura de lazer femenino, mais bordado menos bordado.

A exposição é constituída, salvo pequeníssimas excepções, por obras recentes — duas salas focadas em obras diversas, subretudo tridimensionais; um corredor com a maioria das colagens e duas salas finais com obras mais "pictóricas" ou de grande escala. É claro que podiamos falar demoradamente sobre peças específicas — porque elas o pedem. Como sempre. Também sabemos que a sua obra é ("apenas"?) mais uma das tais que andam a contestar os limites canónicos da arte... a prática oficial da arte parte desse pressuposto. É isso que o ensinam as escolas de arte, os museus, as revistas, que o proclamam os críticos e que mais agrada aos grandes coleccionadores. A juvenilização da cultura e a mercantilização da imaturidade (ó Gombrowicsz!), é o apanágio da nossa época, e a imagem que Trokel e os seus legitimadores querem deixar de si é a da rejeição do "estilo tardio" — pelo menos é o que vem elaboradamente reclamado num dos textos que acompanha a exposição. Forever Young? Desconfio desta polémica, e não conseguimos deixar de sentir nesta exposição as caracteristas dos estilos tardios, que são normalmente "i-moralistas", com maestria, e caracterizados por maior liberdade e desleixe. Estamos a pensar em casos como Ticiano, Rembrandt, Goya, Picasso, etc. É um estilo que mistura o "já me estou nas tintas" com a inevitável revisitação e re-montagem de temas antigos, assim como um aprofundamento das "cenas primitivas" e da auto-auto-retratação.

Por exemplo: as colagens mostram diálogos com a história de arte, sobretudo do século XX: Rainer, Bacon, Gilbet & George, Polke, Fontana, etc. Os organizadores da exposição, não sei se com a cumplicidade de Trockel (acho que ela não se preocupou muito com esta "passagem" pela falida Lisboa, tal como, a contar pelas pessoas que estavam na inauguração, o art world português não se parece interessar muito por esta artista) insistiram sobre a citação/apropriação da pintura de Courbet, a Origem do Mundo, um dos statements mais fortes da arte, pela combinação de duas ideias, a de cosmogonia com a porneia, neste caso o sexo femenino em quase close-up. A associação deste corpo ao artista Raymond Petitbon não nos suscitaria reflexões por aí além, como vem num dos textos, porque nos parece apenas uma piada divertida (e porque não) — já a da aranha (é de Trockel a imagem, ou é uma fotomontagem de outro?) com o fundo manchado (re-des-mentruado?) parece pedir uma reflexão que corrija as reflexões de Brigid Doherty que projecta as suas fantasias sexuais parideiras ou masturbatórias, em vez de olhar para a obra de R.T. , que tantas vezes usou aranhas, incluindo o famoso caso do efeito do uso de diferentes drogas nas aranhas, produzindo padrões bem distintos. É certo que o caracter repelente da aranha aqui associado à sexualidade femenina é um dado adquirido pela cultura popular —  trata-se de enunciar uma relação forte entre o nascimento, a morte, a sexualidade, a criação de teias, padrões, fios que são ao mesmo tempo armadilhas, vestes, filiações, etc. No fundo cada génese implica um luto, e o luto é antecipada consciência de um futuro desaparecimento. Mas será? As colagens sobre a morte da mãe e os seus vestígios de roupa, como se uma memória e energia ainda as habitasse parecem prolongar essa cosmogonia-tanatologia. Mas devemos desconfiar de ideias tão simples. Os idolos cicládicos como o de Amorgos, de que Villa fala a propósito das (não)origens, são a representação neolitica, esquemática e obcessiva, da mulher.

Não sabemos muito bem o que Rosemarie quiz dizer, questionar, ironizar ou qualquer coisa parecida com a maioria dos seus trabalhos. Os artistas estão a maioria das vezes mais preocupados com o fabrico, as ramificações, o natural jogo entre o que os obceca e o que daí pode saír, do que em impôr um sentido. A ambiguidade e a indeterminação existe misturada com "alguma" intencionalidade, mas são os efeitos

Porém saímos da exposição muito meditativas, mais atentas, mais interessadas nos materiais que nos rodeiam, e a pedir também que Trockel se livre dos acrílicos que edstão aparafusados às caixas das colagens, porque as coisas pedem um olhar mais vivo, sem patines. No grande Desdobramento da Porcaria a jaula das Mutações começa a elevar-se.

Friday, October 12, 2012

ARREBATADORAMENTE CRÍTICAS






para a Ana Vidigal, com admiração

Confessamos que não sabemos onde começar, mas ontem à noite deitámo-nos com vontade de fazer da nossa vida epistolar amorosa uma espécie de crítica de arte, vade retro, cruzes canhoto — ou pelo menos algo parecido com crítica de arte, porque queremos tagarelar sobre as coisas, sobretudo das artistas, que aí andam, à espera que alguém diga pelo menos o mínimo sobre elas, porque tagarelar sobre arte pode ser algo apaixonante, emotivo, e que dê mesmo para desatar a rir de euforia ou chorar de uma comoção estupida que se fez ao piso, que nos caíu em cima como uma bebedeira. Escrever sobre arte é para nós uma tarefa artística, não nos vamos armar em inocentes — a ideia é oportunista, torna-nos mais importantes e mais completas e mais necessárias e mais giras aos olhos das outras. Quem é que não o quer? Mas dá trabalho! Normalmente ficamos aborrecidíssimas quando lemos sobre arte, mesmo sendo o caso de mulheres que temos por dignas e enxutas e super interessantes. Eu sei que o nosso discurso, que é essencialmente amoroso, como o do Barthes (lembram-se?), vos vai parecer ridículo, porque já dizia o Campos, a desculpar-se, que as cartas de amor são ridículas, mas mais ridícula é a escrita sobre o que vai em arte que teme exibir precisamente o que a arte pede: aproximação, paixão, vontade vulcanica de entender, e outras coisas do género.

A história mais antiga da crítica regista os casos exemplares de Diderot, Baudelaire e Wilde, que eram todos apaixonados e sulfúricos, como exemplos onde a escrita sobre arte corresponde a uma pulsão ou a uma necessidade erótica. É o que garante a intensidade. Se quiserem chamem-lhe subjectividade. É uma excitação que não te larga a cabeça enquanto não escarrapachas o que sentiste sobre determinadas obras de arte no papel. Também há a os inconvenientes da incompreensão. Não conhecemos nenhum artista que não vista a camisola da incompreensão, mesmo os mais apaparicados e celebrados e galardoados. Escava-se um bocadinho nas conversas e lá vem a incompreensão toda aperaltada com meia dúzia de rancores a compor o ramalhete.

Estimamos que as ideias que nos surgem a propósito das obras de arte não nos chegam pré-fabricadas do alto do infinito - são compostas aos poucos, através de hesitações, enervamentos, momentos daqueles em que parece que um vazio se instala quando puxamos pela cabeça. E depois o estilo também forma as opiniões e as ideias. Outras vezes, a meio da escrita, passamos a ver a coisa de outra maneira — se calhar mais interessante, se calhar mais pedante e equívoca. Achamos importante registar os estados vagos, indecisos e decisórios das nossas reflexões, assim como as convulsões que no corpo acompanham esses estados. É tudo muito aproximativo, como um engate. È claro que há dias em que emburrecemos, e que só nos saiem coisas parvas, e que as nossas boas intenções ficaram no bidé.

Há muitas desconfianças sobre a maneira como se vê a arte. A arte no atelier não é a mesma coisa que a arte na galeria, que a arte na feira, que a arte no museu ou que a arte no livro, ou na revista, com acompanhamento de textos laudatórios ou críticas malévolas de arranhar de rancor a mesa. Há muitas obras de arte que são feitas para belos sítios solenes - ou são feitas mesmo nesses sítios. Mas o que nós gostamos é da arte onde ela parece menos eficaz, mais coitadinha, com menos espaço para respirar, que é no momento em que está a ser feita, no chão, de cócoras, em cima da mesa, na fábrica. É a intímidade, o buzílis, seja delicado ou javardo. A arte nas exposições ou nos museus, assim a seco, parece-nos mais fria, mais puta, mais apta a ser vendida ou subir nas cotações, legitimada não se sabe muito bem para quê, e por aí adiante. É claro que muitas exposições são como livros, compostas para ser lidas e vistas assim. A retórica do expôr faz parte da raison d'être, não acham? A montagem é cada vez mais a prova de uma sensibilidade, mas também de uma des-intimidade e dissimulação. Acho que devemos falar sobre isso e perguntar, com toda a candura de uma curiosidade infantil: "ò menina, porque é que montaste a exposição assim"?

Quando vamos as exposições quantas vezes não caímos numa preplexidade súbita, num baralhamento, a não perceber patavina... E depois perguntamos, explica-me lá um bocadinho a ver se a gente entende alguma coisa — e ficamos maravilhadas, a "adorar", como dizem as adolescentes e as tias, a perceber a força oculta, a pequena história, a confissão brejeira, a divertida e pomposa teoria, e outras coisas parecidas. Se calhar as outras pessoas também o deviam saber para não continuarem na indiferença ou andarem a dizer coisas despropositadas. Dá-nos uma especial satisfação dar conta destas clandestinidades, das trabalheiras, dos modos de confecionar as obras, dos fait-divers autobiográficos, porque isto, aquilo e aqueloutro, não acham?

Prometo que a nossa aproximação vai tentar ser assim, mais natural, mais sensível, sem descurar ideias género "profundas" ou incorrer em embasbacadas tentativas de poetisar... qual é o mal?

Recapitulemos então porque é que queremos ser criticas-artistas-escritoras

a) porque há um vazio imenso, olá se há, sobre a arte que se faz por cá, aqui, ainda por cima com esta crise merdosa em cima, tipo núvem escura cada vez mais densa — e desse vazio nasce um terrível silêncio que é a pior das censuras, o mais candido fascismo bem portuguesinho. E já que estamos numa de chamar as coisas pelos nomes, achamos que pactuar com esse silêncio, ficar caladinhas, é legitimar o estado das coisas. Uma passividade patética, uma panhonhisse que não interessa ao menino Jesus. Esse silêncio é essencialmente afectivo e tem um efeito de degradação do entusiasmo dos artistas. Eles (isto é, nós) precisam que se diga mesmo qualquer coisinha, mesmo que seja uma frase querida, uma ou duas linhas com ar enigmático. Os artistas precisam de uma comoção sentida, de admiração — é quase tão importante como comer.

b) porque escrever sobre o que vai aí, no mundo arte, para além das tricas, que também têm às vezes (mas nem sempre!) o seu interesse, deveria ser um acto essêncialmente prazenteiro, divertido, um exercício de intiligência ao qual não falte sensibilidade — podemos parecer líricas e ingénuas ao dizer isto, mas garanto-vos que é o que vamos fazer, e que não nos vão faltar manhas para levar a bom porto este urgentíssimo projecto.

Sóniantónia e Sandralexandra

Thursday, October 11, 2012



segunda

A ausência de ti alimenta-me, é um "sem" que surge puro e me amolece, a mim que sou tão trinca-espinhas, nesta minha devoção louca ao altar da estética! Sinto-me adiada, culpada de não fazer mais, displicente, sufocada pelos momentos de inércia. Vejo que tenho alguma técnica, e que sou geitosinha nas minhas obras. Creio que as cartas que te mando podem ser um remédio, um elixir que me leve à fama. Por mim própria dir-te-ia Adeus, mas há alguma violência e tabu em ser sentimentalona. Ai, isto de escrever assim depressa e curto cansa!


Cartas de Amor de Sandralexandra
ou do Amor como Obra de Arte


primeira

Piedade vos peço senhora minha neste amor na masmorra da arte embora os atavios não me façam assim pró tanto padecer horrores porque só o bem possível, e o impossível (c'a granda confusão!) está em vós que sois tão conceptual e despachada em tudo. Devo ser para ti mágoas e pouco mais, mas só quero que me ajudes a ir ao encontro das atitudes mais vanguardistas, e saber separar o necessáriamente oficial das vergonhas contestatárias com sua atitude igualmente desmodada e underground, pois a prática da arte é um duro cativeiro, uma longa e insuportável insónia em que se geme de ângustia e prazer.